14 de setembro de 2009

dia desses

Eu sentada numa mesa qualquer de espaço público cultural. Ao meu redor, gente entretida em livros, jornais, revistas e conversas. Eu só com o meu livro, numas de ser intelectual. Dia frio, chuvoso e cinza.
De repente, senta alguém na minha mesa. Acordei da minha leitura que estava prestes a virar cochilo e dei de cara com um homem de aspecto assustador. Evidentemente sujo, barba longa, unhas compridas e encardidas. Tinha uma imagem desagradável e até grotesca. Minha primeira reação foi querer me levantar dali, mas por uma mistura de vergonha e pena decidi ficar.
Ele abriu uma sacola plástica e começou a devorar um pão. Reparei que lhe faltavam alguns dentes.
Após observá-lo discretamente por alguns minutos, em um ímpeto de vontade, iniciei uma conversa com o papo clichê do tempo. Respondeu amigavelmente dizendo que do jeito que chovia, São Paulo poderia ficar sem ver água durante uma semana.
Tudo o que eu perguntava, o homem respondia. Sem grandes rodeios, mas com ares de mistério.
Era do interior do Rio de Janeiro, Barra Mansa, morava na rua e a cada cinco ou seis meses, mudava de cidade.
Descreveu lugares por onde tinha passado e as paisagens que tinha visto. Acrescentou que por diversas vezes foi do Rio à São Paulo a pé e vice-versa, dormindo em beira de estrada e comendo o que lhe caía nas mãos.
Lembrou de praças, de casas, de ventos e do Mazaropi, ao citar que tinha passado pela cidade natal do artista.
(Invejei-o por um instante. Uma vida sem horários, obrigações e satisfações. Um alguém que desistiu de vencer e que vive um dia de cada vez. )
Aparentava cinquenta anos e confessou que há vinte e cinco vivia na rua.
O tal homem de pele castigada e olhos expressivos disse que tinha irmãos e sobrinhos que moravam em sua cidade e que chegaram a lhe oferecer ajuda. Não aceitou. "Melhor viver na rua do que virar um incômodo para alguém."
Comentou que a primeira vez que veio a São Paulo, a procura de emprego, era bem jovem. "Quando cheguei aqui eu tinha 20 anos, que nem tu."
Chegou sem dinheiro e moradia e mentiu para a dona de um restaurante coreano na Liberdade dizendo que morava na Zona Norte, o que lhe rendeu um emprego de ajudante geral.
De fato, não mentiu completamente. Até receber o primeiro pagamento, ficou dormindo na rodoviária do Tietê.
"Eu sentava em uma cadeira e cochilava. O guarda me expulsava, mas quando ele saía de perto, eu voltava." Ia e voltava a pé do trabalho para a rodoviária e após alguns dias, os colegas de trabalho começaram a reclamar do seu odor. "Eu fingia que não ouvia."
Quando finalmente recebeu o primeiro salário, procurou uma pensão no centro da cidade e pode tomar um banho e deitar em uma cama. Na sua primeira noite na pensão, apesar de ter colocado o relógio para despertar, dormiu por vinte horas seguidas. "Depois de um mês cochilando na cadeira, eu desmaiei."
Acordou assustado percebendo que tinha perdido o dia de trabalho e foi até o restaurante (mas dessa vez, de metrô). Contou toda a verdade para a patroa, inclusive a "mentira" contada para conseguir o trabalho. Ela compreendeu e pediu que a falta não se repetisse.
"Eu vivia uma vida normal. De dia trabalhava, de noite ia pra pensão e em dia de folga ia pros bailes atrás de moça. Nunca gostei de bebida, mas um cigarrinho eu fumava."
Tudo ia bem, até que começou a ter uns "problemas na cabeça". Tentou manter o trabalho, mas não conseguiu, os tais problemas o impediram.
Tentei por mais de uma vez questioná-lo sobre o que seriam exatamente esses problemas, mas percebi que ou ele não sabia explicar o que ocorreu ou não queria. Talvez um pouco dos dois.
A partir daí, tentou por diversas vezes se manter em empregos, mas sem sucesso.
Foi aí que optou por viver na rua já que a possibilidade de aceitar ajuda dos irmãos já havia sido descartada.
"No começo, o que mais me incomodava nem era a fome, o frio ou a falta de banho. Era a solidão. Sempre fui meio sozinho, só que a gente sempre acaba arranjando um colega ali, outro lá. Mas quando você é morador de rua, ninguém se aproxima não."
"Hoje em dia, eu estou acostumado. Vivo que nem animal, sabe?"
Perguntei se ele tinha o costume de frequentar aquele local. "Ultimamente, vivo aqui. Vejo tudo quanto é filme, exposição e show."
Destacou um filme espanhol que tinha visto no dia anterior e fez uma crítica bem construída justificando que tinha achado o filme ruim por conta dos diálogos e da direção que eram pobres e mal feitos.
Perguntei se ele não pensava em tentar novamente arranjar um emprego, alugar uma pensão. “Foi difícil cair na rua, mas agora é difícil me entregar para a sociedade de novo.” Me disse arqueando as sobrancelhas.
Se despediu dizendo que assistiria um filme dali cinco minutos. Eu sorri e ele se virou. Quando estava prestes a voltar a minha leitura enfadonha, vi que ele se aproximava novamente. “Você é repórter, né?”
“Não sou, não.”
Recebi um sorriso tímido e um “obrigado”.

8 comentários:

Anônimo disse...

bela história !vc escreve mto bem dé.

Carlinha disse...

Não te conheço, mas me emocionei com essa história! Bacana seu blog!
Carla

Bruno Xavier disse...

Lindo

Unknown disse...

Dedé, amei sua narrativa sobre o morador de rua.....

Amarylis disse...

Você escreve lindamente, Debs.
Gostei de entrar novamente em contato com essa passagem.

Agora eu quero voltar a escrever, acabei de criar um blog. Vamos ver no que dá.

Beijos e parabéns!

Antônio Sozinho disse...

Ah sim! Ah sim!

Projete Liberdade Capoeira disse...

Débora, muito legal essa narrativa... muito viva e plena de detalhes... me fez sentir a presença da pessoa e ter a sensação de que estava conversando pessoalemnet com ele... Vinicius

baga.d disse...

melhor do que esta bela narrativa, apenas sua atitude em superar um pré-conceito e puxar papo com o figura.
parabéns, garota!