9 de dezembro de 2009

de noite de cor azul

vou roubar uma estrela
dessas que se vestem de flor
pra te dar
já até tenho um plano
vou jogar uma corda lá no alto
pra prender em constelação
vou subir devagarinho
pra apreciar a paisagem cor de prata
quando eu chegar
pedirei licença pra dona Lua
não escolherei a estrela mais brilhante não
vou pegar a primeira que sorrir pra mim
dessas que se enfeitam toda pra nos receber
dessas todas saltitantes
com vocação pra ser cadente
ela vai subir no meu ombro
e quando você chegar
vou pedir pra ela se esconder e fazer silêncio
vou te oferecer a estrelinha menina
e quando você sorrir
meu coração vai ficar feliz
que nem raio de sol
em dia que o verão chega de vez

14 de setembro de 2009

dia desses

Eu sentada numa mesa qualquer de espaço público cultural. Ao meu redor, gente entretida em livros, jornais, revistas e conversas. Eu só com o meu livro, numas de ser intelectual. Dia frio, chuvoso e cinza.
De repente, senta alguém na minha mesa. Acordei da minha leitura que estava prestes a virar cochilo e dei de cara com um homem de aspecto assustador. Evidentemente sujo, barba longa, unhas compridas e encardidas. Tinha uma imagem desagradável e até grotesca. Minha primeira reação foi querer me levantar dali, mas por uma mistura de vergonha e pena decidi ficar.
Ele abriu uma sacola plástica e começou a devorar um pão. Reparei que lhe faltavam alguns dentes.
Após observá-lo discretamente por alguns minutos, em um ímpeto de vontade, iniciei uma conversa com o papo clichê do tempo. Respondeu amigavelmente dizendo que do jeito que chovia, São Paulo poderia ficar sem ver água durante uma semana.
Tudo o que eu perguntava, o homem respondia. Sem grandes rodeios, mas com ares de mistério.
Era do interior do Rio de Janeiro, Barra Mansa, morava na rua e a cada cinco ou seis meses, mudava de cidade.
Descreveu lugares por onde tinha passado e as paisagens que tinha visto. Acrescentou que por diversas vezes foi do Rio à São Paulo a pé e vice-versa, dormindo em beira de estrada e comendo o que lhe caía nas mãos.
Lembrou de praças, de casas, de ventos e do Mazaropi, ao citar que tinha passado pela cidade natal do artista.
(Invejei-o por um instante. Uma vida sem horários, obrigações e satisfações. Um alguém que desistiu de vencer e que vive um dia de cada vez. )
Aparentava cinquenta anos e confessou que há vinte e cinco vivia na rua.
O tal homem de pele castigada e olhos expressivos disse que tinha irmãos e sobrinhos que moravam em sua cidade e que chegaram a lhe oferecer ajuda. Não aceitou. "Melhor viver na rua do que virar um incômodo para alguém."
Comentou que a primeira vez que veio a São Paulo, a procura de emprego, era bem jovem. "Quando cheguei aqui eu tinha 20 anos, que nem tu."
Chegou sem dinheiro e moradia e mentiu para a dona de um restaurante coreano na Liberdade dizendo que morava na Zona Norte, o que lhe rendeu um emprego de ajudante geral.
De fato, não mentiu completamente. Até receber o primeiro pagamento, ficou dormindo na rodoviária do Tietê.
"Eu sentava em uma cadeira e cochilava. O guarda me expulsava, mas quando ele saía de perto, eu voltava." Ia e voltava a pé do trabalho para a rodoviária e após alguns dias, os colegas de trabalho começaram a reclamar do seu odor. "Eu fingia que não ouvia."
Quando finalmente recebeu o primeiro salário, procurou uma pensão no centro da cidade e pode tomar um banho e deitar em uma cama. Na sua primeira noite na pensão, apesar de ter colocado o relógio para despertar, dormiu por vinte horas seguidas. "Depois de um mês cochilando na cadeira, eu desmaiei."
Acordou assustado percebendo que tinha perdido o dia de trabalho e foi até o restaurante (mas dessa vez, de metrô). Contou toda a verdade para a patroa, inclusive a "mentira" contada para conseguir o trabalho. Ela compreendeu e pediu que a falta não se repetisse.
"Eu vivia uma vida normal. De dia trabalhava, de noite ia pra pensão e em dia de folga ia pros bailes atrás de moça. Nunca gostei de bebida, mas um cigarrinho eu fumava."
Tudo ia bem, até que começou a ter uns "problemas na cabeça". Tentou manter o trabalho, mas não conseguiu, os tais problemas o impediram.
Tentei por mais de uma vez questioná-lo sobre o que seriam exatamente esses problemas, mas percebi que ou ele não sabia explicar o que ocorreu ou não queria. Talvez um pouco dos dois.
A partir daí, tentou por diversas vezes se manter em empregos, mas sem sucesso.
Foi aí que optou por viver na rua já que a possibilidade de aceitar ajuda dos irmãos já havia sido descartada.
"No começo, o que mais me incomodava nem era a fome, o frio ou a falta de banho. Era a solidão. Sempre fui meio sozinho, só que a gente sempre acaba arranjando um colega ali, outro lá. Mas quando você é morador de rua, ninguém se aproxima não."
"Hoje em dia, eu estou acostumado. Vivo que nem animal, sabe?"
Perguntei se ele tinha o costume de frequentar aquele local. "Ultimamente, vivo aqui. Vejo tudo quanto é filme, exposição e show."
Destacou um filme espanhol que tinha visto no dia anterior e fez uma crítica bem construída justificando que tinha achado o filme ruim por conta dos diálogos e da direção que eram pobres e mal feitos.
Perguntei se ele não pensava em tentar novamente arranjar um emprego, alugar uma pensão. “Foi difícil cair na rua, mas agora é difícil me entregar para a sociedade de novo.” Me disse arqueando as sobrancelhas.
Se despediu dizendo que assistiria um filme dali cinco minutos. Eu sorri e ele se virou. Quando estava prestes a voltar a minha leitura enfadonha, vi que ele se aproximava novamente. “Você é repórter, né?”
“Não sou, não.”
Recebi um sorriso tímido e um “obrigado”.

31 de julho de 2009

querência

É tanto que calo das tardes sem hora
Onde só o instante era o que importava
Sem barreiras, impedimentos, distâncias
É tanto que guardo dos sussuros, suspiros e gemidos roucos
Da noite sem amanhã
É tanto que fica do abraço de alma
Numa tarde no parque em dia de verão
É tanto que rasga da angústia do impossível
De deixar tudo pro destino fazer
É tanto que treme de medo que o tempo te arraste pra longe
E tudo vire lembrança de uma juventude (bem) vivida
É tanto que fica
É nada que passa
É tanto querer
É tanta falta
Tanto (des)encontro, tanta (in)justiça
É tanto choro engasgado
Tanto grito abafado
Tanto riso adiado
É tanta vida que a gente deixa esperando ter hora pra viver
É tanta sobra
É tudo ou nada

5 de maio de 2009

Sou sem fim

Já fui heroína, vilã, religiosa, pagã
Já fui passarinho, já fui menina acuada
Já fui riso, choro, grito solto
Já fui amante e amada
Quem rejeita e quem é rejeitada
Já fui selvagem, pop, carnaval e rock
Quem julga e quem é julgada
Já fui dia de festa, velório
Já fui casamento, já fui libertinagem
Já fui criança, homem, mulher
Já fui equilíbrio, já fui manicômio
Quem prende e quem é presa
Já fui seriedade, já fui bebedeira
Já fui piedade, fui pena
Já fui suicídio, fui nascimento
Quem dá tapa, quem recebe bofetada
Já fui efusiva, já fui recatada
Fui ajuizada, fui da pá virada
Quem aproveita
Quem se sente aproveitada
Já fui gozo, fui susto
Já fui dor, fui amor
Já fui efêmera
Hoje sou tudo
Sou nada
Sou infinita