26 de junho de 2008

Rifa-se

Rifa-se um cérebro
Um cérebro semi novo
Um cérebro que frita, que ilumina
Que pisca, que apaga
Mas um cérebro competente
Daqueles que dão conta do recado
Por vezes desconcertado mas com neorônios em bom estado

Rifa-se uma boca
Uma boca cheia de dentes que mastigam
Resseca de sede e cospe
Se cala muda e pálida
E por vezes, suspira e sorri

Rifa-se seios
Seios jovens que nem amamentaram
Sensíveis ao frio, já expostos ao calor
Que gostam de água quente e vapor

Rifa-se braços
Braços finos e longos
Porém, não se engane
Braços fortes
Que já se penduraram em árvore
Lá no alto
Braços com ossos à mostra
Carentes de abraço

Rifa-se uma barriga
Que infla de alívio
E contrai de nervosismo
Reclama quando vazia
Mas não é das mais barulhentas

Rifa-se mãos
Mãos que escrevem, costuram
Aplaudem, vacilam, afagam
Batem, amassam e tocam
Mãos um pouco magras
Mas como são espertas e agitadas

Rifa-se um fígado
Sim, meus senhores, um fígado
É compacto, está em perfeitas condições
Preguiçoso e molenga
Mas funciona à álcool

Rifa-se pernas
Nem grossas nem finas
Desajeitadas no andar
Graciosas ao bailar
Pernas essas que pulam
Não são pra chutes
Mas adoram correr em areia fofa

Rifa-se pés
Pés frenéticos
Que sacodem o tempo todo
São grandes e feios
Não se dão bem com sapatos
Mas estão à procura de chinelos velhos

Rifa-se pulmões
Não possuem vestígio nicotínico
Criados na poluição
Todavia buscam ar puro

Rifa-se tripas
Por que não tripas?
Ora! Tripas que exercem bem sua função
Guardam na hora de guardar
E expulsam quase sempre reguladas
Gostam elas de fibras e mamão papaia

Rifa-se costas
Essas exigem certos cuidados
Gostam de massagem, creme
E quando começam a coçar
Custam a parar
Não possuem postura invejável
São curvadas e sinuosas
Mas não vacilam ao erguer-se
Enganam até que são valentes

Rifa-se olhos
Olhos vivos e grandes
São míopes e claros
Brilham quando vêem lua cheia
Choram de desgosto
E falam mais que a boca

E por fim

Rifa-se um coração
Esse aí é peculiar
Coração quase novo, idealista e moleque
Coração esse que vive pregando peças no seu usuário
Um coração que quer viver intensamente
Tantas vezes sorri
Tantas vezes chora
Tantas vezes parte esse pobre coração
Coração besta daqueles que não aprendem
Quer tanto viver e é tão afoito
Às vezes tenta sair pela boca
O modelo é ultrapassado e antigo
Mas ele faz questão de não se modernizar
E por isso constrange o usuário
Esse coração é contra indicado para aqueles
Que não gostam de emoções
Coração inocente mas vivido
Já esteve apertado e saudoso
Machucado e destruído
Mas possui incrível poder de cicatrização
Contudo, se notam marcas
Coração convencido que acha que é forte
Mas é sensível e medroso
Mas uma recomendação importantíssima
Ao ganhador da rifa
Maneje-o cuidadosamente
Porque ele transborda de amor

*livremente inspirado no poema "Rifa-se Um Coração" de Clarice Lispector

8 de junho de 2008

Pé de cachimbo

Hoje é domingo. Eu gosto de domingos. Em dia de domingo eu ando de meia pela casa. Minha mãe não gosta, diz que fica toda encardida. Minha casa está em reforma. Está mudando tudo: piso, parede, rejunte, batente e rodapé. Reforma é chato. Mudanças são difíceis. Faz barulho, sujeira e bagunça. E a gente não sabe nem pra onde correr, nem o que fazer. Mas parece que no fim vai ficar tudo certo: paredes brancas, chão brilhante e elegância. Foi o que me disseram, pelo menos. Mas hoje é domingo. E em dia de domingo a reforma pára. A gente pára. Pára pra pensar no que fazer, no que aconteceu e no que ainda vai acontecer.
Mas como eu disse, reforma é uma confusão. Não consigo achar nada do que procuro. Onde estão aqueles meus sapatos vermelhos? Reviro aqui, remexo ali e depois de tanto procurar eu acabo por esquecer o que eu estava procurando.
Tentei fazer arrumação. Achei uma porção de coisas inúteis no criado-mudo e outras muitas que me fizeram lembrar.
Domingo é um dia nostálgico. Será que é porque a semana chega ao fim? Mas domingo não é o primeiro dia da semana? Afinal, é o fim ou o começo? Bobagem pensar isso, é tudo uma coisa só. Porque amanhã é segunda e depois terça e quarta e aí chega o domingo de novo.
Minha mãe tinha razão, minhas meias estão encardidas.
Não consegui terminar a arrumação, muita coisa pra pôr em ordem, decidir o que fica, o que vai e o que muda de lugar. Aqui estão meus sapatos vermelhos que eu tanto procurei! Mas agora não mais preciso usá-los, porque agora estou só de meia.
A pintura da sala está inacabada. Está tudo manchado. Coisas inacabadas são esquisitas, né?
Ontem minha mãe ficou brava porque o pedreiro não fez as coisas do jeito que ela queria. Paciência. Às vezes é difícil se fazer entender, ele não a entendeu. Mas sabe que o piso ficou uma beleza? É... deu errado mas deu tudo certo.
Precisava terminar minha arrumação. Está indo devagar mas não vou me apressar. Quero olhar gaveta por gaveta.
Já escureceu. Daqui à pouco termina o domingo.